«A Competição Nacional de Atletismo aconteceu há dias. Havia muitos atletas na pista, mas boa parte não tinha intenções de vencer. Queria, apenas, receber, ao fim da competição, uma garrafa de água, uma frutinha e uma camiseta. Tem sido sempre assim. Zeca, o…
𝐿𝑒𝑟 𝑚𝑎𝑖𝑠 »«As boladas mortais do Mercado Estrela Vermelha… Já vi, ali na Eduardo Mondlane, uma menina que chorava sem parar; jurava no meio de soluços que tinha comprado um colar de ouro, mas misteriosamente na pequena caixinha, em suas mãos, só tinha um minúsculo miol…
𝐿𝑒𝑟 𝑚𝑎𝑖𝑠 »Por: Sérgio Raimundo - Militar «Tio Mondlane, a tua antiga estátua foi arrancada. E hoje tens uma nova estátua. A estátua tem a mesma roupa que a antiga, embora menos engomada e amarfanhada, mas isso não importa muito e compreende-se: a energia é cara demais …
𝐿𝑒𝑟 𝑚𝑎𝑖𝑠 »«Encomenda para o Presidente da República Tenho uma encomenda para o senhor, Presidente. É uma caixa preta, ou azul... não tenho mais certeza de que cor é. Deu-me trabalho carregá-la até aqui, pois escorria dela muito sangue, que cobria minhas mãos. Também ch…
𝐿𝑒𝑟 𝑚𝑎𝑖𝑠 »«Crônica: A Rua das bucetas Vendiam buceta, na rua perto da minha casa. Meus vizinhos iam lá, para comprar buceta. Meus tios dormiam lá às vezes. Meu pai odiava aquela rua. Falava que era onde Deus depositava a escória do mundo inteiro. Mas um dia, eu ia com…
𝐿𝑒𝑟 𝑚𝑎𝑖𝑠 »«A Competição Nacional de Atletismo aconteceu há dias. Havia muitos atletas na pista, mas boa parte não tinha intenções de vencer. Queria, apenas, receber, ao fim da competição, uma garrafa de água, uma frutinha e uma camiseta. Tem sido sempre assim.
Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, e o Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, lideravam a corrida. Na cauda deles, seguia um atleta que tinha as paredes do seu quarto cheias de medalhas e diplomas de segundo lugar, o atleta escorregava na pista como se tivesse manteiga nos pés. E a sua enorme língua, armada de cansaço, saía-lhe da boca e, como uma autêntica vassoura, varria a pista.
Voltemos aos líderes da corrida. De tempos a tempos, o Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, liderava a corrida e os seus pés, sobre a pista de alcatrão, pareciam mãos sobre um batuque: vibravam. Mas, quem, de facto, rasgava sem parar, a alta velocidade, a pista em pedaços era Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, um homem cabeludo que já tinha passado por mais de dez clubes de atletismo.
Nas bordas da pista, havia um molho de gente que aplaudia. O Zeca, Fugitivo dos Barbeiros, liderava a corrida; não era preciso binóculos para ver isso. A única coisa que chegava aos seus pés descalços era a enorme sombra do Coqueiro de Inhambane que parecia parada numa rua qualquer de Maxixe.
Quando faltavam poucos quilómetros para a meta, que se chamava Ponta Vermelha da competição, o Coqueiro de Inhambane começou a ser empurrado a velocidade. O Coqueiro de Inhambane avançava, pois a cada curva da pista, sem ninguém, surgia alguém que lhe uma garrafinha de água; o carro que filmava a competição, de quando em quando, dava-lhe uma boleia bem rápida e quando chegasse onde houvesse muita gente era despejado na pista e benzido de água para mostrar a todos que estava a suar de tanto correr.
Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, continuava a correr, a lutar contra o cansaço. Os atletas competiam de pés nus sobre o alcatrão quente, mas Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, às escondidas tinha sido colocado dois farrapos de napas nos pés por um delegado da competição que controlava a competição de forma transparente e justa.
Na pista, sem ninguém ver, ainda entrou um massagista para reanimar os músculos do Coqueiro de Inhambane, ainda entrou um nutricionista que entulhou o Coqueiro de Inhambane de vitaminas, ainda deram patins ao Coqueiro de Inhambane e todos viram quando até o relógio foi desacertado para que o Coqueiro de Inhambane batesse o maior recorde nacional.
Zeca ainda tentou acelerar, mas foi ultrapassado pelo Coqueiro de Inhambane. O Coqueiro de Inhambane agitava sem parar a sua enorme altura bem longe, e ele chegou à meta e foi aplaudido. E nem precisou de cortar a meta, o coordenador da competição cortou a meta em seu nome bem antes do início da corrida.»
«As boladas mortais do Mercado Estrela Vermelha…
Já vi, ali na Eduardo Mondlane, uma menina que chorava sem parar; jurava no meio de soluços que tinha comprado um colar de ouro, mas misteriosamente na pequena caixinha, em suas mãos, só tinha um minúsculo miolo de bronze de um cabo eléctrico. E quando voltou à pequena sombra do vendedor nenhum sinal dele. A menina espumando lágrimas foi engolida por um chapa de Malhazine e desapareceu com o miolo do cabo eléctrico para usá-lo na instalação eléctrica da sua tristeza.Tive um vizinho que correndo para varrer os elementos de uma gigante lista de lobolo foi parar ao mercado Estrela; queria dois garrafões de vinho e saiu do Estrela com dois garrafões bem selados e empanturrados até à rolha com água fria pintada de saquetas de chá “Five Roses”. Descobriu isso na sograria quando começava a hora do brinde. O lobolo foi cancelado e ele saiu da sograria arrastando garrafões cheios de “Five Roses”.Um professor de Química da minha antiga escola, Armando Guebuza, já foi ao Estrela para comprar uma resma de folhas para os testes. E chegado à escola, quando descerrava a fitinha da resma viu um entulho de jornais. E comoveu-se quando num dos jornais viu um defunto, na página de necrologia, que seria enterrado no mesmo dia na Lhanguene. O teste foi adiado em nome do defunto e em nome da resma.São tantos episódios. O pastor da igreja da minha tia já foi ao Estrela para comprar uma chave de roda, porque os anjos nem sempre apertam bem as rodas dos pastores. No Estrela, o pastor viu uma bíblia estendida no passeio no meio de revistas de mulheres nuas; folheou a bíblia e viu que era a sua, a que tinha desaparecido na igreja. Viu a sua assinatura “Pastor Sigaúque, servo de Deus”. E a bíblia custava 200 meticais. Teve de comprar a sua própria bíblia.Em 2007, quando Lucky Dube foi assassinado, um tio meu foi ao Estrela comprar uma pilha de discos desse vibrante artista. E estava lá a cara de Lucky Dube em todos os discos, e estavam lá os temas das músicas e a respectiva duração. E quando chegou a casa, o meu tio reuniu a família para ver Lucky Dube. E quando enfiou o disco no pequeno forno do DVD, depois de minutos, não surgiu Lucky Dube na tela. Surgiu um casal de actores jamaicanos pornográficos aos gritos.O meu tio com uma mão lutava com o comando do DVD e com a outra varria a família da sala; enquanto isso, os dois actores, suados como Lucky Dube em palco, continuavam a fazer o seu trabalho. Depois de expulsar os actores disse para si mesmo “nunca mais compro nada ali no Estrela”.Sérgio Raimundo - Militar»
Fonte: Sérgio Raimundo - Militar
«Tio Mondlane, a tua antiga estátua foi arrancada. E hoje tens uma nova estátua. A estátua tem a mesma roupa que a antiga, embora menos engomada e amarfanhada, mas isso não importa muito e compreende-se: a energia é cara demais nestes dias.A nova estátua tem os mesmos sapatos, embora não engraxados, apesar de tantos engraxadores que andam nesta cidade. E o cinto continua com o mesmo aperto e a mesma fivela.Tio Mondlane, a nova estátua surge com a cabeça enorme, se calhar seja para que tenha espaço suficiente de pensar nos diversos problemas do nosso país. Mas, eu acho que não gostaste da nova estátua. Não tenho a certeza, tio Mondlane. E eu sinto pena do pequeno pescoço dessa estátua que terá de segurar, anos e anos, essa enorme cabeça. Muita pena mesmo.Eu nem precisava de te contar tudo isto, tio Mondlane. Podes dar um giro, ali na tua avenida e verás tudo... Se calhar a tua avenida não mais vai precisar de polícias de trânsito na hora da ponta, pois a tua nova estátua tem o punho levantado, meio curvado, como se avisasse para o trânsito avançar pela direita.Se calhar, tio Mondlane, a nova estátua não queria levantar o punho; se calhar foram mesmo as ordens superiores que mandaram a nova estátua erguer o punho. E os olhos meio olheirentos da nova estátua? Viste, tio Mondlane?Não é por maldade, tio Mondlane. Responde-me: gostaste da nova estátua? Segreda-me. Gostaste? Gostaste do livro que a tua nova estátua segura? Nós sabemos que gostavas de livros e por isso sabemos que aquilo que está na nova estátua é um livro. Tio Mondlane: viste a tua nova estátua?»
«Encomenda para o Presidente da RepúblicaTenho uma encomenda para o senhor, Presidente. É uma caixa preta, ou azul... não tenho mais certeza de que cor é. Deu-me trabalho carregá-la até aqui, pois escorria dela muito sangue, que cobria minhas mãos. Também cheirava à morte, como se tivesse corpos dentro dela. Tentei limpar o sangue com uma camiseta vermelha, cor do partido prometido poder absoluto, para que ninguém notasse.Mas enquanto eu limpava o sangue, senhor Presidente. Enquanto eu limpava o maldito sangue, ouvia gritos distantes, vindos da caixa. Pareciam soldados gritando socorro. Talvez estivessem sendo queimados vivos. Ou talvez estivessem sendo despedaçados, daí o sangue.Pude captar alguns gritos, senhor. As coisas que diziam. Gritavam por seus filhos, que ficarão sem pais. Gritavam por suas mulheres, que ficarão sem seus maridos. E também por seus pais, que nunca mais verão seus filhos.Seus soldadinhos inocentes!Esta encomenda, senhor. Fez-me reflectir sobre a vida. Sobre como a fome nos fatiga. Não temos o que comer, eu e meus irmãos. Também não trabalhamos, porque o emprego é muito selectivo. Quem trabalha, recebe menos do que trabalha. O pagamento é miserável, e o mando é acumulado.Também tinha um irmão com futuro promissor. Morreu ainda na mocidade. Foi baleado arredores na cidade. Os jornais falam que foi bala perdida... mas eu e mais outros, sabemos que foi vítima do sistema. Porque liderava uma manifestação, em função de organizar esta nação.Esta encomenda, senhor. Também contém um lembrete sobre as urnas. Os votos não fidelizam com sua ordem natural. Tem gato nisto tudo. Ou devo dizer, dedo podre?Nesta encomenda, senhor Presidente. Existe muito luto. Meus conterrâneos jazem dentro da caixa. Muitos rostos ensanguentados, dos que abraçaram a morte em Chitima. Lembra?Nesta encomenda, senhor Presidente. Pululam milhares de fantasmas dos homens injustiçados pelo vosso sistema. E vieram assombrá-lo, até que finalmente achem seu descanso eterno.Por: Haquin Dos Santos»
«Crônica: A Rua das bucetasVendiam buceta, na rua perto da minha casa. Meus vizinhos iam lá, para comprar buceta. Meus tios dormiam lá às vezes. Meu pai odiava aquela rua. Falava que era onde Deus depositava a escória do mundo inteiro.
Mas um dia, eu ia comprar pão, daqueles feitos com raiva, por padeiros tristes e imundos, como se prestassem tal ofício ao diabo. Antes de chegar na padaria, vi meu pai acenar para uma negociante de buceta, numa outra rua, também perto da minha casa. Estava risonho, e com uma satisfação emoldurada em seu rosto, como se conhecesse aquela mulher antes da minha mãe.Contei o sucedido para minha irmã mais velha. Ela deu um breve sorriso sarcástico. Pelos patéticos deuses, ela sabia! Segredou-me que já não era segredo nenhum, pois minha mãe também sabia. Por isso que o chamava de Casanova, enquanto espreitavam lágrimas em seus olhos. Maldito seja o meu pai! Quem sai comprando bucetas por aí, tendo mulher em casa?Mas até políticos iam lá, para comprar buceta. Os jornalistas, depois de perseguir notícia. Até poetas eróticos iam lá, para aperfeiçoar seus esquemas rimáticos. Naquela e outra rua, perto da minha casa... vi minha namorada fotografar atentamente com seus olhos, os becos, onde mais tarde a encontrava repetidamente semi-nua. Tatuou um unicórnio à 5 centímetros perto da buceta... não deu satisfação e deixou-me. Contei de novo para minha irmã. De novo, ela sorriu. Sussurou-me ao ouvido, um segredo. Disse que tinha comprado um iPhone, e ninguém sabia. Que tinha um carro por aí, e ninguém sabia. Que pretendia comprar uma casa, mas tinha primeiro que mudar daquela rua, e outra, também perto da minha casa, e procurar uma rua que pagava mais por bucetas.Minha irmã era proprietária dos bordéis que ficavam nas duas ruas, perto da minha casa... e também vendia buceta.Por: Haquin Dos Santos»
«A Competição Nacional de Atletismo aconteceu há dias. Havia muitos atletas na pista, mas boa parte não tinha intenções de vencer. Queria, apenas, receber, ao fim da competição, uma garrafa de água, uma frutinha e uma camiseta. Tem sido sempre assim.
Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, e o Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, lideravam a corrida. Na cauda deles, seguia um atleta que tinha as paredes do seu quarto cheias de medalhas e diplomas de segundo lugar, o atleta escorregava na pista como se tivesse manteiga nos pés. E a sua enorme língua, armada de cansaço, saía-lhe da boca e, como uma autêntica vassoura, varria a pista.
Voltemos aos líderes da corrida. De tempos a tempos, o Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, liderava a corrida e os seus pés, sobre a pista de alcatrão, pareciam mãos sobre um batuque: vibravam. Mas, quem, de facto, rasgava sem parar, a alta velocidade, a pista em pedaços era Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, um homem cabeludo que já tinha passado por mais de dez clubes de atletismo.
Nas bordas da pista, havia um molho de gente que aplaudia. O Zeca, Fugitivo dos Barbeiros, liderava a corrida; não era preciso binóculos para ver isso. A única coisa que chegava aos seus pés descalços era a enorme sombra do Coqueiro de Inhambane que parecia parada numa rua qualquer de Maxixe.
Quando faltavam poucos quilómetros para a meta, que se chamava Ponta Vermelha da competição, o Coqueiro de Inhambane começou a ser empurrado a velocidade. O Coqueiro de Inhambane avançava, pois a cada curva da pista, sem ninguém, surgia alguém que lhe uma garrafinha de água; o carro que filmava a competição, de quando em quando, dava-lhe uma boleia bem rápida e quando chegasse onde houvesse muita gente era despejado na pista e benzido de água para mostrar a todos que estava a suar de tanto correr.
Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, continuava a correr, a lutar contra o cansaço. Os atletas competiam de pés nus sobre o alcatrão quente, mas Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, às escondidas tinha sido colocado dois farrapos de napas nos pés por um delegado da competição que controlava a competição de forma transparente e justa.
Na pista, sem ninguém ver, ainda entrou um massagista para reanimar os músculos do Coqueiro de Inhambane, ainda entrou um nutricionista que entulhou o Coqueiro de Inhambane de vitaminas, ainda deram patins ao Coqueiro de Inhambane e todos viram quando até o relógio foi desacertado para que o Coqueiro de Inhambane batesse o maior recorde nacional.
Zeca ainda tentou acelerar, mas foi ultrapassado pelo Coqueiro de Inhambane. O Coqueiro de Inhambane agitava sem parar a sua enorme altura bem longe, e ele chegou à meta e foi aplaudido. E nem precisou de cortar a meta, o coordenador da competição cortou a meta em seu nome bem antes do início da corrida.»
«As boladas mortais do Mercado Estrela Vermelha…
Já vi, ali na Eduardo Mondlane, uma menina que chorava sem parar; jurava no meio de soluços que tinha comprado um colar de ouro, mas misteriosamente na pequena caixinha, em suas mãos, só tinha um minúsculo miolo de bronze de um cabo eléctrico. E quando voltou à pequena sombra do vendedor nenhum sinal dele. A menina espumando lágrimas foi engolida por um chapa de Malhazine e desapareceu com o miolo do cabo eléctrico para usá-lo na instalação eléctrica da sua tristeza.Tive um vizinho que correndo para varrer os elementos de uma gigante lista de lobolo foi parar ao mercado Estrela; queria dois garrafões de vinho e saiu do Estrela com dois garrafões bem selados e empanturrados até à rolha com água fria pintada de saquetas de chá “Five Roses”. Descobriu isso na sograria quando começava a hora do brinde. O lobolo foi cancelado e ele saiu da sograria arrastando garrafões cheios de “Five Roses”.Um professor de Química da minha antiga escola, Armando Guebuza, já foi ao Estrela para comprar uma resma de folhas para os testes. E chegado à escola, quando descerrava a fitinha da resma viu um entulho de jornais. E comoveu-se quando num dos jornais viu um defunto, na página de necrologia, que seria enterrado no mesmo dia na Lhanguene. O teste foi adiado em nome do defunto e em nome da resma.São tantos episódios. O pastor da igreja da minha tia já foi ao Estrela para comprar uma chave de roda, porque os anjos nem sempre apertam bem as rodas dos pastores. No Estrela, o pastor viu uma bíblia estendida no passeio no meio de revistas de mulheres nuas; folheou a bíblia e viu que era a sua, a que tinha desaparecido na igreja. Viu a sua assinatura “Pastor Sigaúque, servo de Deus”. E a bíblia custava 200 meticais. Teve de comprar a sua própria bíblia.Em 2007, quando Lucky Dube foi assassinado, um tio meu foi ao Estrela comprar uma pilha de discos desse vibrante artista. E estava lá a cara de Lucky Dube em todos os discos, e estavam lá os temas das músicas e a respectiva duração. E quando chegou a casa, o meu tio reuniu a família para ver Lucky Dube. E quando enfiou o disco no pequeno forno do DVD, depois de minutos, não surgiu Lucky Dube na tela. Surgiu um casal de actores jamaicanos pornográficos aos gritos.O meu tio com uma mão lutava com o comando do DVD e com a outra varria a família da sala; enquanto isso, os dois actores, suados como Lucky Dube em palco, continuavam a fazer o seu trabalho. Depois de expulsar os actores disse para si mesmo “nunca mais compro nada ali no Estrela”.Sérgio Raimundo - Militar»
Fonte: Sérgio Raimundo - Militar
«Tio Mondlane, a tua antiga estátua foi arrancada. E hoje tens uma nova estátua. A estátua tem a mesma roupa que a antiga, embora menos engomada e amarfanhada, mas isso não importa muito e compreende-se: a energia é cara demais nestes dias.A nova estátua tem os mesmos sapatos, embora não engraxados, apesar de tantos engraxadores que andam nesta cidade. E o cinto continua com o mesmo aperto e a mesma fivela.Tio Mondlane, a nova estátua surge com a cabeça enorme, se calhar seja para que tenha espaço suficiente de pensar nos diversos problemas do nosso país. Mas, eu acho que não gostaste da nova estátua. Não tenho a certeza, tio Mondlane. E eu sinto pena do pequeno pescoço dessa estátua que terá de segurar, anos e anos, essa enorme cabeça. Muita pena mesmo.Eu nem precisava de te contar tudo isto, tio Mondlane. Podes dar um giro, ali na tua avenida e verás tudo... Se calhar a tua avenida não mais vai precisar de polícias de trânsito na hora da ponta, pois a tua nova estátua tem o punho levantado, meio curvado, como se avisasse para o trânsito avançar pela direita.Se calhar, tio Mondlane, a nova estátua não queria levantar o punho; se calhar foram mesmo as ordens superiores que mandaram a nova estátua erguer o punho. E os olhos meio olheirentos da nova estátua? Viste, tio Mondlane?Não é por maldade, tio Mondlane. Responde-me: gostaste da nova estátua? Segreda-me. Gostaste? Gostaste do livro que a tua nova estátua segura? Nós sabemos que gostavas de livros e por isso sabemos que aquilo que está na nova estátua é um livro. Tio Mondlane: viste a tua nova estátua?»
«Encomenda para o Presidente da RepúblicaTenho uma encomenda para o senhor, Presidente. É uma caixa preta, ou azul... não tenho mais certeza de que cor é. Deu-me trabalho carregá-la até aqui, pois escorria dela muito sangue, que cobria minhas mãos. Também cheirava à morte, como se tivesse corpos dentro dela. Tentei limpar o sangue com uma camiseta vermelha, cor do partido prometido poder absoluto, para que ninguém notasse.Mas enquanto eu limpava o sangue, senhor Presidente. Enquanto eu limpava o maldito sangue, ouvia gritos distantes, vindos da caixa. Pareciam soldados gritando socorro. Talvez estivessem sendo queimados vivos. Ou talvez estivessem sendo despedaçados, daí o sangue.Pude captar alguns gritos, senhor. As coisas que diziam. Gritavam por seus filhos, que ficarão sem pais. Gritavam por suas mulheres, que ficarão sem seus maridos. E também por seus pais, que nunca mais verão seus filhos.Seus soldadinhos inocentes!Esta encomenda, senhor. Fez-me reflectir sobre a vida. Sobre como a fome nos fatiga. Não temos o que comer, eu e meus irmãos. Também não trabalhamos, porque o emprego é muito selectivo. Quem trabalha, recebe menos do que trabalha. O pagamento é miserável, e o mando é acumulado.Também tinha um irmão com futuro promissor. Morreu ainda na mocidade. Foi baleado arredores na cidade. Os jornais falam que foi bala perdida... mas eu e mais outros, sabemos que foi vítima do sistema. Porque liderava uma manifestação, em função de organizar esta nação.Esta encomenda, senhor. Também contém um lembrete sobre as urnas. Os votos não fidelizam com sua ordem natural. Tem gato nisto tudo. Ou devo dizer, dedo podre?Nesta encomenda, senhor Presidente. Existe muito luto. Meus conterrâneos jazem dentro da caixa. Muitos rostos ensanguentados, dos que abraçaram a morte em Chitima. Lembra?Nesta encomenda, senhor Presidente. Pululam milhares de fantasmas dos homens injustiçados pelo vosso sistema. E vieram assombrá-lo, até que finalmente achem seu descanso eterno.Por: Haquin Dos Santos»
«Crônica: A Rua das bucetasVendiam buceta, na rua perto da minha casa. Meus vizinhos iam lá, para comprar buceta. Meus tios dormiam lá às vezes. Meu pai odiava aquela rua. Falava que era onde Deus depositava a escória do mundo inteiro.
Mas um dia, eu ia comprar pão, daqueles feitos com raiva, por padeiros tristes e imundos, como se prestassem tal ofício ao diabo. Antes de chegar na padaria, vi meu pai acenar para uma negociante de buceta, numa outra rua, também perto da minha casa. Estava risonho, e com uma satisfação emoldurada em seu rosto, como se conhecesse aquela mulher antes da minha mãe.Contei o sucedido para minha irmã mais velha. Ela deu um breve sorriso sarcástico. Pelos patéticos deuses, ela sabia! Segredou-me que já não era segredo nenhum, pois minha mãe também sabia. Por isso que o chamava de Casanova, enquanto espreitavam lágrimas em seus olhos. Maldito seja o meu pai! Quem sai comprando bucetas por aí, tendo mulher em casa?Mas até políticos iam lá, para comprar buceta. Os jornalistas, depois de perseguir notícia. Até poetas eróticos iam lá, para aperfeiçoar seus esquemas rimáticos. Naquela e outra rua, perto da minha casa... vi minha namorada fotografar atentamente com seus olhos, os becos, onde mais tarde a encontrava repetidamente semi-nua. Tatuou um unicórnio à 5 centímetros perto da buceta... não deu satisfação e deixou-me. Contei de novo para minha irmã. De novo, ela sorriu. Sussurou-me ao ouvido, um segredo. Disse que tinha comprado um iPhone, e ninguém sabia. Que tinha um carro por aí, e ninguém sabia. Que pretendia comprar uma casa, mas tinha primeiro que mudar daquela rua, e outra, também perto da minha casa, e procurar uma rua que pagava mais por bucetas.Minha irmã era proprietária dos bordéis que ficavam nas duas ruas, perto da minha casa... e também vendia buceta.Por: Haquin Dos Santos»
«A Competição Nacional de Atletismo aconteceu há dias. Havia muitos atletas na pista, mas boa parte não tinha intenções de vencer. Queria, apenas, receber, ao fim da competição, uma garrafa de água, uma frutinha e uma camiseta. Tem sido sempre assim.
Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, e o Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, lideravam a corrida. Na cauda deles, seguia um atleta que tinha as paredes do seu quarto cheias de medalhas e diplomas de segundo lugar, o atleta escorregava na pista como se tivesse manteiga nos pés. E a sua enorme língua, armada de cansaço, saía-lhe da boca e, como uma autêntica vassoura, varria a pista.
Voltemos aos líderes da corrida. De tempos a tempos, o Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, liderava a corrida e os seus pés, sobre a pista de alcatrão, pareciam mãos sobre um batuque: vibravam. Mas, quem, de facto, rasgava sem parar, a alta velocidade, a pista em pedaços era Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, um homem cabeludo que já tinha passado por mais de dez clubes de atletismo.
Nas bordas da pista, havia um molho de gente que aplaudia. O Zeca, Fugitivo dos Barbeiros, liderava a corrida; não era preciso binóculos para ver isso. A única coisa que chegava aos seus pés descalços era a enorme sombra do Coqueiro de Inhambane que parecia parada numa rua qualquer de Maxixe.
Quando faltavam poucos quilómetros para a meta, que se chamava Ponta Vermelha da competição, o Coqueiro de Inhambane começou a ser empurrado a velocidade. O Coqueiro de Inhambane avançava, pois a cada curva da pista, sem ninguém, surgia alguém que lhe uma garrafinha de água; o carro que filmava a competição, de quando em quando, dava-lhe uma boleia bem rápida e quando chegasse onde houvesse muita gente era despejado na pista e benzido de água para mostrar a todos que estava a suar de tanto correr.
Zeca, o Fugitivo dos Barbeiros, continuava a correr, a lutar contra o cansaço. Os atletas competiam de pés nus sobre o alcatrão quente, mas Jossefa, o Coqueiro de Inhambane, às escondidas tinha sido colocado dois farrapos de napas nos pés por um delegado da competição que controlava a competição de forma transparente e justa.
Na pista, sem ninguém ver, ainda entrou um massagista para reanimar os músculos do Coqueiro de Inhambane, ainda entrou um nutricionista que entulhou o Coqueiro de Inhambane de vitaminas, ainda deram patins ao Coqueiro de Inhambane e todos viram quando até o relógio foi desacertado para que o Coqueiro de Inhambane batesse o maior recorde nacional.
Zeca ainda tentou acelerar, mas foi ultrapassado pelo Coqueiro de Inhambane. O Coqueiro de Inhambane agitava sem parar a sua enorme altura bem longe, e ele chegou à meta e foi aplaudido. E nem precisou de cortar a meta, o coordenador da competição cortou a meta em seu nome bem antes do início da corrida.»
«As boladas mortais do Mercado Estrela Vermelha…
Já vi, ali na Eduardo Mondlane, uma menina que chorava sem parar; jurava no meio de soluços que tinha comprado um colar de ouro, mas misteriosamente na pequena caixinha, em suas mãos, só tinha um minúsculo miolo de bronze de um cabo eléctrico. E quando voltou à pequena sombra do vendedor nenhum sinal dele. A menina espumando lágrimas foi engolida por um chapa de Malhazine e desapareceu com o miolo do cabo eléctrico para usá-lo na instalação eléctrica da sua tristeza.Tive um vizinho que correndo para varrer os elementos de uma gigante lista de lobolo foi parar ao mercado Estrela; queria dois garrafões de vinho e saiu do Estrela com dois garrafões bem selados e empanturrados até à rolha com água fria pintada de saquetas de chá “Five Roses”. Descobriu isso na sograria quando começava a hora do brinde. O lobolo foi cancelado e ele saiu da sograria arrastando garrafões cheios de “Five Roses”.Um professor de Química da minha antiga escola, Armando Guebuza, já foi ao Estrela para comprar uma resma de folhas para os testes. E chegado à escola, quando descerrava a fitinha da resma viu um entulho de jornais. E comoveu-se quando num dos jornais viu um defunto, na página de necrologia, que seria enterrado no mesmo dia na Lhanguene. O teste foi adiado em nome do defunto e em nome da resma.São tantos episódios. O pastor da igreja da minha tia já foi ao Estrela para comprar uma chave de roda, porque os anjos nem sempre apertam bem as rodas dos pastores. No Estrela, o pastor viu uma bíblia estendida no passeio no meio de revistas de mulheres nuas; folheou a bíblia e viu que era a sua, a que tinha desaparecido na igreja. Viu a sua assinatura “Pastor Sigaúque, servo de Deus”. E a bíblia custava 200 meticais. Teve de comprar a sua própria bíblia.Em 2007, quando Lucky Dube foi assassinado, um tio meu foi ao Estrela comprar uma pilha de discos desse vibrante artista. E estava lá a cara de Lucky Dube em todos os discos, e estavam lá os temas das músicas e a respectiva duração. E quando chegou a casa, o meu tio reuniu a família para ver Lucky Dube. E quando enfiou o disco no pequeno forno do DVD, depois de minutos, não surgiu Lucky Dube na tela. Surgiu um casal de actores jamaicanos pornográficos aos gritos.O meu tio com uma mão lutava com o comando do DVD e com a outra varria a família da sala; enquanto isso, os dois actores, suados como Lucky Dube em palco, continuavam a fazer o seu trabalho. Depois de expulsar os actores disse para si mesmo “nunca mais compro nada ali no Estrela”.Sérgio Raimundo - Militar»
Fonte: Sérgio Raimundo - Militar
«Tio Mondlane, a tua antiga estátua foi arrancada. E hoje tens uma nova estátua. A estátua tem a mesma roupa que a antiga, embora menos engomada e amarfanhada, mas isso não importa muito e compreende-se: a energia é cara demais nestes dias.A nova estátua tem os mesmos sapatos, embora não engraxados, apesar de tantos engraxadores que andam nesta cidade. E o cinto continua com o mesmo aperto e a mesma fivela.Tio Mondlane, a nova estátua surge com a cabeça enorme, se calhar seja para que tenha espaço suficiente de pensar nos diversos problemas do nosso país. Mas, eu acho que não gostaste da nova estátua. Não tenho a certeza, tio Mondlane. E eu sinto pena do pequeno pescoço dessa estátua que terá de segurar, anos e anos, essa enorme cabeça. Muita pena mesmo.Eu nem precisava de te contar tudo isto, tio Mondlane. Podes dar um giro, ali na tua avenida e verás tudo... Se calhar a tua avenida não mais vai precisar de polícias de trânsito na hora da ponta, pois a tua nova estátua tem o punho levantado, meio curvado, como se avisasse para o trânsito avançar pela direita.Se calhar, tio Mondlane, a nova estátua não queria levantar o punho; se calhar foram mesmo as ordens superiores que mandaram a nova estátua erguer o punho. E os olhos meio olheirentos da nova estátua? Viste, tio Mondlane?Não é por maldade, tio Mondlane. Responde-me: gostaste da nova estátua? Segreda-me. Gostaste? Gostaste do livro que a tua nova estátua segura? Nós sabemos que gostavas de livros e por isso sabemos que aquilo que está na nova estátua é um livro. Tio Mondlane: viste a tua nova estátua?»
«Encomenda para o Presidente da RepúblicaTenho uma encomenda para o senhor, Presidente. É uma caixa preta, ou azul... não tenho mais certeza de que cor é. Deu-me trabalho carregá-la até aqui, pois escorria dela muito sangue, que cobria minhas mãos. Também cheirava à morte, como se tivesse corpos dentro dela. Tentei limpar o sangue com uma camiseta vermelha, cor do partido prometido poder absoluto, para que ninguém notasse.Mas enquanto eu limpava o sangue, senhor Presidente. Enquanto eu limpava o maldito sangue, ouvia gritos distantes, vindos da caixa. Pareciam soldados gritando socorro. Talvez estivessem sendo queimados vivos. Ou talvez estivessem sendo despedaçados, daí o sangue.Pude captar alguns gritos, senhor. As coisas que diziam. Gritavam por seus filhos, que ficarão sem pais. Gritavam por suas mulheres, que ficarão sem seus maridos. E também por seus pais, que nunca mais verão seus filhos.Seus soldadinhos inocentes!Esta encomenda, senhor. Fez-me reflectir sobre a vida. Sobre como a fome nos fatiga. Não temos o que comer, eu e meus irmãos. Também não trabalhamos, porque o emprego é muito selectivo. Quem trabalha, recebe menos do que trabalha. O pagamento é miserável, e o mando é acumulado.Também tinha um irmão com futuro promissor. Morreu ainda na mocidade. Foi baleado arredores na cidade. Os jornais falam que foi bala perdida... mas eu e mais outros, sabemos que foi vítima do sistema. Porque liderava uma manifestação, em função de organizar esta nação.Esta encomenda, senhor. Também contém um lembrete sobre as urnas. Os votos não fidelizam com sua ordem natural. Tem gato nisto tudo. Ou devo dizer, dedo podre?Nesta encomenda, senhor Presidente. Existe muito luto. Meus conterrâneos jazem dentro da caixa. Muitos rostos ensanguentados, dos que abraçaram a morte em Chitima. Lembra?Nesta encomenda, senhor Presidente. Pululam milhares de fantasmas dos homens injustiçados pelo vosso sistema. E vieram assombrá-lo, até que finalmente achem seu descanso eterno.Por: Haquin Dos Santos»
«Crônica: A Rua das bucetasVendiam buceta, na rua perto da minha casa. Meus vizinhos iam lá, para comprar buceta. Meus tios dormiam lá às vezes. Meu pai odiava aquela rua. Falava que era onde Deus depositava a escória do mundo inteiro.
Mas um dia, eu ia comprar pão, daqueles feitos com raiva, por padeiros tristes e imundos, como se prestassem tal ofício ao diabo. Antes de chegar na padaria, vi meu pai acenar para uma negociante de buceta, numa outra rua, também perto da minha casa. Estava risonho, e com uma satisfação emoldurada em seu rosto, como se conhecesse aquela mulher antes da minha mãe.Contei o sucedido para minha irmã mais velha. Ela deu um breve sorriso sarcástico. Pelos patéticos deuses, ela sabia! Segredou-me que já não era segredo nenhum, pois minha mãe também sabia. Por isso que o chamava de Casanova, enquanto espreitavam lágrimas em seus olhos. Maldito seja o meu pai! Quem sai comprando bucetas por aí, tendo mulher em casa?Mas até políticos iam lá, para comprar buceta. Os jornalistas, depois de perseguir notícia. Até poetas eróticos iam lá, para aperfeiçoar seus esquemas rimáticos. Naquela e outra rua, perto da minha casa... vi minha namorada fotografar atentamente com seus olhos, os becos, onde mais tarde a encontrava repetidamente semi-nua. Tatuou um unicórnio à 5 centímetros perto da buceta... não deu satisfação e deixou-me. Contei de novo para minha irmã. De novo, ela sorriu. Sussurou-me ao ouvido, um segredo. Disse que tinha comprado um iPhone, e ninguém sabia. Que tinha um carro por aí, e ninguém sabia. Que pretendia comprar uma casa, mas tinha primeiro que mudar daquela rua, e outra, também perto da minha casa, e procurar uma rua que pagava mais por bucetas.Minha irmã era proprietária dos bordéis que ficavam nas duas ruas, perto da minha casa... e também vendia buceta.Por: Haquin Dos Santos»
Good design makes the ordinary extraordinary.
The page you've requested can't be found. Why don't you browse around?
Take me backWelcome To Basil